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"Bátegas de Vero Amor"- Entrevista a Roxana Lugojan

Parece impossível associar William Shakespeare ao poder feminino. Escreveu Hamlet, Macbeth, Otelo... e nenhuma peça escreveu à qual atribuísse um nome de rapariga. Porém, a personagem feminina está sempre lá: delicada, subtil, quase impercetível, mas absolutamente essencial. Esta foi a mensagem transmitida no Auditório Carlos Paredes, pela peça Bátegas de Vero Amor: a mulher tem poder, em Shakespeare, e não só. Hoje, a atriz que deu vida a Ofélia, a estudante de Teatro Roxana Lugojan responde às perguntas que a peça deixou no público.


1.O que é que esteve na origem da criação desta peça?

Nós decidimos escolher várias peças de Shakespeare em que, supostamente, se dá mais ênfase ao homem, ou seja, à personagem masculina. Só que há quem defenda que a personagem feminina nessas peças, nomeadamente no Macbeth, no Hamlet, no Otelo e no Titus Andronicus, também tem uma grande ênfase e que é muito provável que ele tenha criado estas peças de maneira a criar uma história à volta da mulher, de uma forma disfarçada, porque na altura não existia o feminismo e, pronto, a mulher não tinha tantos direitos como tem agora, obviamente. Então nós decidimos pegar na história destas quatro mulheres, da Ofélia do Hamlet, da Desdémona do Otelo, da Lady Macbeth do Macbeth e da Lavínia, do Titus Andronicus, e mostrar a sua tragédia, as suas histórias e, de certa maneira, demonstrar como é que tudo isto ainda acontece um bocado hoje em dia.


2. Em que consiste o enredo do Bátegas de Vero Amor?

O enredo de Bátegas de Vero Amor… ao início temos a interação com o homem de maneira diferente das nossas personagens, porque aí estamos a usar um texto do Titus Andronicus, mas que é da Tamora, ou seja, uma personagem que é feminina, mas muito mais imponente. Ela está a falar com os filhos, e este texto é dividido pelas três e acontece esse encontro entre três mulheres, que depois representam as histórias da Ofélia, da Lavínia e da Lady Macbeth. Todas elas alcançam a loucura, de certa forma, e por motivos diferentes, e no final do espetáculo, há um diálogo entre as mesmas três mulheres, há uma conversa entre elas em que é quase como um apanhado: aconteceu-nos isto tudo, o que é que fazemos agora? E com a questão do o que é que fazemos agora, acontece um manifesto feminista, no final do espetáculo, e acaba assim com o poder feminino ao máximo, no auge.

Ela percebe que viveu este tempo todo a ser controlada por alguém.


3. Porque é que é importante realçar o papel destas mulheres na peça original a que pertencem?

Eu posso falar mais propriamente da minha personagem, que era a Ofélia. A Ofélia no Hamlet não tem quase importância nenhuma, só tem importância pelo amor que ela supostamente nutre pelo Hamlet. Ela é quase uma personagem secundária, porque parece que as coisas vão-lhe acontecendo por acaso. Por acaso, mas levam-lhe à loucura... há quem diga que é loucura, mas eu acho que é lucidez extrema, porque Hamlet mata o pai dela, e quando ele mata o pai dela, é quando ela atinge esse momento de lucidez, porque é quando vê a pessoa que ela acha que ama (porque nós não sabemos se ela ama de facto o Hamlet, visto que ela tem 14 anos), a matar o seu próprio pai. Aí as coisas tornam-se muito mais reais; ela não só perde o pai, que é se calhar a pessoa que ela mais ama, além do irmão, o Laertes, como também perde o amor dela, e tudo deixa de fazer sentido. Ela percebe que viveu este tempo todo a ser controlada por alguém, e quando deixa de ter algum controlo, sente-se perdida e acho que aí decide optar pelo suicídio. Mas a importância dela aqui é para perceber como o controlo masculino e como a manipulação pelo homem consegue levar uma mulher a agir de uma maneira menos lúcida. A Lady Macbeth é uma vilã, e Macbeth também, só que toda a gente diz que, aliás muitas pessoas dizem que foi a Lady Macbeth que fez com que o Macbeth cometesse todos os crimes que cometeu. Ou seja, ele teve a ideia de: “se calhar vou matar estas pessoas”, mas ela diz sempre: “não, vamos mesmo porque assim vamos conseguir ser reis”. Mas a importância dela aqui é perceber que ela fez tudo para que este homem chegasse onde ela queria, mas de certa maneira, se ele não tivesse demonstrado que também queria, ela nunca teria agido sozinha, porque era impossível. Do meu ponto de vista feminino, ela sentiu o peso de o levar a realizar as coisas negativas, que ela se calhar nem queria assim tanto fazer, mas como ele queria, fê-lo.


4. Qual é a especificidade de cada uma delas? O que é que as distingue umas das outras?

Para começar, a Ofélia é a mais nova delas todas. A minha visão desta personagem é de que ela se suicida por causa da lucidez que alcança e não porque está louca. Eu acho que ela é capaz de alcançar a loucura antes disso, só que acho que quando ela decide mesmo suicidar-se, é mesmo com aquela vontade lúcida de que lhe tirem daquela vida. Quanto à Lady Macbeth, ela é uma vilã, e torna-se uma vilã um bocado por causa do Macbeth. Ela faz tudo por ele, e enlouquece mesmo, ao ponto de ter insónias. Ela também se suicida, isso é o que elas as duas têm em comum. Elas suicidam-se, a idade não tem nada a ver, uma é boa, outra não é tão boa. Depois a Lavínia é violada, e aí sim, temos mesmo o homem a tocar na mulher, a agredi-la e a danificá-la, literalmente, porque cortam-lhe as mãos e a língua. Este é o caso em que a Lavínia não se suicida, a Lavínia é morta pelo seu pai, que não aguenta vê-la assim, supostamente. Quanto à Desdémona, que aparece na voz-off com o Otelo, não é o mesmo. Ela cai numa cilada, criada por pessoas de fora da relação dela com o Otelo, no entanto o Otelo não acredita nela, acredita naquilo que outro homem lhe diz, e portanto decide matá-la.

Se nós mudarmos alguma coisa na história, ou o nosso ponto de vista da história, elas passam a ser principais, porque tudo acontece a volta delas, é quase como um rebuçado que é criado para elas estarem lá no meio.


5. E o que é que têm em comum?

O que elas têm em comum: têm a dor que elas sofrem durante a peça. A Desdémona nem tanto, porque aí está, ela é um bocado rejeitada pelo Otelo, quando ele começa a perceber a situação, mas quando ele teve de facto a certeza que ela tinha cometido adultério, é aí que decide matá-la. Portanto, o momento de dor dela é quase repentino, porque acontece de imediato. Mas aí esta, na verdade, a Desdémona era inocente. A Ofélia também era inocente, ela simplesmente suicidou-se porque já não estava a aguentar lidar com tudo o que estava a acontecer na vida dela. Também é um bocado porque ela vivia rodeada de homens, não havia mulheres à volta dela, a única mulher que havia era a rainha, mas a rainha não era próxima a ela... assim, quando esses homens começam a cair (o Hamlet mata o pai, ela fica sem o pai, e sem o Hamlet) começa a enlouquecer um bocado. Depois vê o irmão, e percebe que o irmão também está destroçado, e chega uma altura em que ela já não consegue, eu acho que ela já não quer lidar com aquilo tudo, e opta pelo suicídio. Mas aí está, ela também era inocente, acima de tudo, e foi um bocado todo este mundo do homem que a leva a cometer este suicídio, tal como foi o homem que matou a Desdémona, e tal como foi também a influência do homem que levou a Lady Macbeth a cometer o suicídio (foi a vontade de Macbeth que a levou a tentar convencê-lo a fazer aquilo que ele de facto queria). Depois no fim, o próprio Macbeth começa a enlouquecer, então ela começa a perdê-lo, e aí, perde-se ela também, porque eles eram um bocado unha com carne. Quando ela começa a perdê-lo, perde-se a si própria, e suicida-se. Eu não acho que a Lady Macbeth seja completamente inocente, mas no fundo era inocente, porque não agia sozinha, nem por vontade própria. A Lavínia, pronto, a Lavínia era completamente inocente. Ela sofreu só porque o pai dela tinha agido mal com a Tamora, e com a família da Tamora, por isso é que ela é violada, por isso é que lhe cortam as mãos e a língua. É o pai dela que decide matá-la, ou seja... o que têm em comum, e resumindo: o homem, o homem que as influencia, que as leva a matar-se, ou as mata, e as agride fisicamente ou psicologicamente. Têm em comum a inocência (a Lady Macbeth nem tanto, mas também porque é a inocência do amor, que se calhar é ainda mais bonita), e são todas personagens que supostamente não são principais, mas que se nós mudarmos alguma coisa na história, ou o nosso ponto de vista da história, elas passam a ser principais, porque tudo acontece a volta delas, é quase como um rebuçado que é criado para elas estarem lá no meio.

Até me pergunto até que ponto a loucura dela não era loucura, mas simplesmente brincadeiras de criança, porque ela até podia ser muito mais inocente do que se pensa (...) nada nos diz que ela está de facto louca.


6. Interpretaste o papel de Ofélia, da peça Hamlet. De que forma é que este papel foi um desafio para ti?

Fazer a Ofélia foi um desafio para mim, para começar, porque já fizeram 10000 Ofélias (risos). O Hamlet já foi representado imensas vezes, e já houve imensas Ofélias, e quando alguém me dá alguma coisa para representar ou criar, gosto sempre de fazer algo diferente, e isso é muito difícil em Shakespeare. Já foi representado tantas vezes, já se viu tantas vezes, e além disso, não sabes se estás a fazer algo diferente, porque tu nunca consegues ver tudo o que já foi feito. Só por aí, já foi um desafio enorme. Além disso, a possibilidade de fazeres uma Ofélia e ela ser má é imensa, porque primeiro, tens que ter uma visão muito clara dela, a tua visão, e neste caso, não sei se a minha é aceite assim por muitas pessoas, por causa do que eu já disse, que eu acho que ela se suicidou por causa da lucidez. Agora, o que foi difícil para mim foi lidar com o facto de ela ter 14 anos e estar apaixonada, ou supostamente apaixonada, ou acreditar que está apaixonada; num segundo momento, ter perdido o pai, e no terceiro momento, o suicídio. Para além disso, ainda tinha de combinar um bocado a loucura que ela atinge em certos pontos e a lucidez, porque eu queria fazer um grande contraste entre a lucidez e a loucura dela. Aliás, até me pergunto até que ponto a loucura dela não era loucura, mas simplesmente brincadeiras de criança, porque ela até podia ser muito mais inocente do que se pensa. Loucura… não sei, é possível, mas nada nos diz que ela está de facto louca. Sim, temos outras personagens, como a rainha, que dizem que ela está louca, mas não tens nada que confirme que ela está louca. Ela está a cantar, sim, mas é uma miúda de 14 anos, não é assim tão estranho ela cantar. Então a maior dificuldade foi um bocado conseguir lidar com estas diferenças todas, mantendo ainda a minha visão e aquilo que eu sou, porque eu não tenho 14 anos, eu tenho 21 anos, e queria lhe dar também um bocado mais de fisicalidade; não ir por aquela parte muito cliché da criancinha, mas manter assim alguma coisa mais espevitada, mais acesa.


7. Porque é que nesta peça Ofélia parece mais irracional e louca do que na peça original?

Quando tu lês a obra, ela passa-te ao lado, e eu não acho que ela deve passar ao lado. Ela destaca-se, porque canta, e canta coisas estranhas, e tudo o mais, só que eu pensei: como é que eu vou integrar isto em mim? Como é que eu vou cantar estas músicas que não fazem sentido nenhum, mas de maneira que eu passe a senti-las para mim naquele momento? Também eu não sei se ela parece mais irracional e mais louca, eu acho que ela parece maior, parece que ocupa mais espaço. A Ofélia não está só ali pequenina e a mais, não é só uma personagem que é triste, não é só uma personagem. É algo que é diferente e que não é só texto, é algo integrado no corpo.


8. No que diz respeito a Lady Macbeth e Lavínia, de que forma são diferentes nesta peça?

Eu não sei se isto já foi feito, tal como eu disse, é muito difícil saber o que já foi feito em Shakespeare... mas por exemplo, a Lady Macbeth tem uma ação durante o peça original, que é na parte final, quando ela começa a enlouquecer, ela começa a esfregar muito as mãos, a lamentar as mortes que já lhe passaram, que já aconteceram por causa da decisão inicial que ela teve. Aliás, ela até mesmo no excerto da obra que nós escolhemos lamenta… não diz que lamenta, mas fala da morte de Banquo, e este movimento de esfregar as mãos, nós decidimos ampliá-lo e metê-lo também no espaço. Ela não só andava a esfregar as mãos, como de repente via uma mancha no ar e tentava apaga-la, ou algo do género. Este movimento foi aumentando cada vez mais, até que chega a um ponto, mesmo antes de ela se suicidar, que o esfregar dela torna-se no corpo todo. Ela esfrega-se a si própria, esfrega o chão, esfrega tudo, e é quase uma exaustão do esfregar; foi a nossa maneira de a matar, foi levá-la ao excesso deste movimento, ou seja, do tentar limpar aquilo que ela acha que fez mal, porque de facto foi isso que a levou ao suicídio. Quanto à Lavínia, a cena da violação da Lavínia é super complicada de se fazer, porque é uma cena de violação, e é feita em palco, e é quase impossível ter algo que remeta para a violação e que seja minimamente verosímil. O que nós decidimos fazer foi baixar as luzes, as luzes ficaram num tom de vermelho, como estiveram em toda a cena, mas muito mais escuro. Então, quase só se vê o vulto da Inês Veloso, a atriz que fazia de Lavínia, e dos outros atores que estavam fora, que era eu, a Catarina Rabaça e o Tadeu Faustino. Entrávamos em cena, dando-lhe diferentes estímulos, estímulos que também eram visíveis para o público, mas que nunca eram assim nada de muito agressivo, e ela ia reagindo perante o estímulo. Não sei se de facto foi algo diferente daquilo que já foi feito, mas foi a nossa tentativa de dar o nosso próprio toque ao texto que estávamos a trabalhar.

A dor delas não existe, até que elas deem voz à sua própria dor.

Nós não sabemos até que ponto é que Shakespeare não escreveu as peças para elas.

Todas estas mulheres acham que são amadas, e até são, mas é exatamente o excesso desse amor que roça muitas vezes o controlo e a possessão, e que as levam à dor.


9. A expressão Bátegas de Vero Amor é dita por Ofélia. Porque é que foi este o nome escolhido como título da peça?

Escolher o titulo do espetáculo foi missão impossível (risos). Nem fui eu que me lembrei deste título, e ele faz parte do texto que eu digo; mas, bátegas de vero amor: bátegas são chuvas intensas, de vero amor é de amor verdadeiro, ou seja, chuvas intensas de amor verdadeiro; porque todas estas mulheres acham que são amadas, e até são, mas é exatamente o excesso desse amor que roça muitas vezes os erros desses seus amores, e que as levam à dor; Daí ser bátegas de vero amor (chuvas intensas de amor verdadeiro), pois se calhar elas até eram amadas, mas todos sabiam que o homem é que tinha o poder na relação.

  • Entrevista elaborada por Alícia Raquel, e respondida por Roxana Lugojan, 26 de outubro de 2016


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