Um musical além do ‘normal’
Como prometido na crónica passada (aqui), este mês a sugestão cultural teatral passa por um espetáculo ‘quase normal’…para melhor. Um musical que não é ‘água com açúcar’, cor de rosa; é um musical rock, moderno, transgressor!
Em cena no Auditório do Casino Estoril, Quase Normal é um musical rock que realça a capacidade interpretativa dos atores em cena, a amplitude das possantes vozes dos intérpretes e sobretudo o esquema emocional do auditório. É um musical sobre a bipolaridade. Uma peça musical, não um documentário! É sobretudo um espetáculo sobre pessoas, sobre relações; que nos faz refletir sobre a forma de encarar o que ocorre não arbitrariamente na nossa vida e que, no fim, transmite uma mensagem positiva, porque afinal, o que é ser ‘normal’?
Lúcia Moniz não podia ser uma escolha mais acertada para a protagonista Diana. Assim como os seus filhos, Mariana Pacheco e Valter Mira – brilhantes no seu desempenho vocal e emocional. Só uma atriz com a capacidade de criar cumplicidade, transmitir familiaridade e compaixão poderia protagonizar esta peça. Lúcia Moniz foi uma jogada de mestre, uma escolha acertadíssima! A energia de Diana, bipolar, foi resgatada. Podia ser a mãe de qualquer um de nós, a mulher de qualquer um de nós; uma mulher tão normal, ou quase normal, como qualquer outra. Com as suas vivências, os seus afetos…os seus traumas.
Bipolaridade e Teatro Musical? Pois, é possível. Como que uma receita de cozinha alternativa: uma proposta irreverente, extremamente improvável, arriscada, mas que resulta num preparado que satisfaz a alma do cliente. Não é um musical sobre princesas. É cómico, é triste, é comovente, é alegre. É verosímil. É realista!
It’s another day é a música de abertura que traça o tom da peça logo à priori. Figurino, cenário que a acompanham… comuns; uma casa como a de cada um de nós; um pequeno almoço; uma família ‘normal’, marido, mulher, dois filhos. Familiaridade. Mas, como em todas as narrativas, o detonante chegará para interromper este começo perfeito, idílico, postiço, quase normal, “A família tão perfeita e adorável.” – assim se diz na letra da música, traduzida por Henrique Feist, o encenador.
De referir, e sublinhar, que a peça possui uma orquestra ao vivo. O que se revela como um intensificador da proposta da peça: a efemeridade, a verdade do sentimento, o sem rede.
Nomeado para 11 Tonys (vencendo 3) e galardoado com o Prémio Pulitzer para Drama em 2010, o maravilhoso texto é realçado pelas interpretações singulares. A cena pré-final entre mãe e filha, interpretadas respetivamente por Lúcia Moniz e Mariana Pacheco é o apogeu emocional da peça. O confronto das duas formas de estar distintas provoca uma tensão não óbvia, magistral. É sem dúvida a cena que mais destaco. Brilhantemente sentida pelas duas atrizes – que têm um desempenho singular. A verosimilhança e realismo imperam!
Talvez o único ponto menos positivo- contrastante com o tom da peça - tenha sido a presença dos dois profissionais de saúde, que possuíam diferentes abordagens à bipolaridade. Interpretados por Diogo Leite, a tarefa não era de facto fácil. Era exigida a confeção de uma omeleta sem ovos. O desprimor não é do ator, de longe. Mas o enquadramento narrativo e artístico promovido aos dois personagens causa algum ruído. A proposta contrasta demais com as restantes realidades, situações e personagens da peça. É percetível a função dramatúrgica dos personagens, mas talvez a abordagem não tenha sido a mais indicada. Algo soa a postiço e a apresentação de questões éticas sobre a psicologia moderna cria uma sensação de que os visados são “os maus da fita”, os outsiders, destoando um pouco da harmonia disfuncional da família retratada.
Não poderei deixar de realçar ainda a luz e energia diferentes, mágicas e cintilantes evocadas por Valter Mira. A especificidade e magia que circulam em torno do personagem foram captadas com mestria. Uma atuação muito limpa, afinada, que ganha proporções magistrais com as harmonias e as melodias cantadas pela incrível voz do intérprete. 6 estrelas!
E ainda um agradecimento especial pela importação desta peça norte-americana por parte de Henrique Feist, o encenador e tradutor – uma escolha acertadíssima. Parabéns aos irmãos Feist (e à ArtFeist) por mais um espetáculo ambicioso apresentado com consistência, rigor e principalmente muito esforço pessoal. Obrigado!
Nesta peça intensa, não é só Diana que ri, chora, ama…o espetador também. A eletrocardiograma de emoções vivido pela protagonista é também vivido por cada um dos espetadores. A promessa de um espetáculo extremamente emocionante e de querer repetir a experiência espera por si. Não perca!